Jogando contra o Sistema: Viéses e o Papel Evolutivo dos Jogos na Socialização Masculina
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Historicamente, cerca de 25% dos homens adultos morreram em decorrência de guerras. Não tenho uma estimativa para mortes em caçadas, mas não é difícil encontrar histórias sobre homens fictícios ou figuras históricas que morreram ou foram gravemente feridos por animais de caça (chamados de “grandes jogos” em inglês). Portanto, não considero um exagero estimar que a caça e a guerra foram historicamente responsáveis por um terço das mortes de homens adultos. A seleção natural provavelmente favoreceu características que aumentam a sobrevivência nestas atividades.
Um jeito de diminuir riscos é formar grupos cooperativos. Se esses grupos forem duradouros, a familiaridade entre seus membros ajudará a coordenar ações mais rapidamente, o que é ainda melhor, e amizades são grupos cooperativos duradouros. Conscientemente ou não, as pessoas tendem a formar amizades com pessoas parecidas a si mesmas e que podem oferecer algum benefício material ou social. Portanto, é esperado que homens tendem ser amigos dos melhores caçadores e guerreiros.
As diferenças sexuais nos estilos de amizade apoiam essa visão. Comparadas às amizades femininas, os grupos de amizades masculinas são geralmente descritos como maiores, mais hierárquicos e focados em atividades, valorizando a coesão sobre a harmonia. Todas essas características são úteis na guerra e na caça e é notável que homens em geral são mais interessados em assistir e praticar esportes que mulheres. Tem-se sugerido que os esportes, especialmente os em equipe, surgiram como uma forma de praticar habilidades de caça e guerra. Infelizmente, o viés delta nos faz ver as amizades masculinas como inferiores às femininas por serem “menos íntimas e os homens falarem menos sobre sentimentos”. Contudo, nunca foi demonstrado que “falar sobre sentimentos” beneficia os homens e eles geralmente têm um ou dois “melhores amigos” com quem mantêm um relacionamento “íntimo”. Esta diferença sexual provavelmente reflete as diferentes formas que homens e mulheres lidam com o estresse, em geral. Com as mulheres querendo explorar seus sentimentos e os homens querendo consertar o problema.
“Como homens costumam jogar jogos para lidar com o estresse mais comumente que as mulheres, jogar problematicamente pode ser uma estratégia de autorregulação associada ao sexo e que deu errada.”
Vejamos agora os jogos digitais. Os efeitos dos jogos digitais na saúde mental têm sido um tema polêmico nas últimas cinco décadas. Em 2013, o DSM-5 incluiu o “transtorno de jogo de internet” como uma condição que necessita de mais pesquisa e, em 2018, a OMS incluiu "transtorno de jogo” como um transtorno oficial no CID-11. Faço parte do grupo que reconhece que algumas pessoas jogam jogos digitais de formas não saudáveis, mas acha que incluir transtorno de jogo (de internet) em manuais diagnósticos foi uma decisão apressada, considerando a quão confusa é a pesquisa nessa área. Contudo, meu objetivo aqui é ressaltar os vieses gama e delta presentes neste campo.
O viés gama consiste em aumentar diferenças sexuais quando mulheres são prejudicadas ou se dão bem, enquanto são minimizadas as diferenças sexuais quando homens são prejudicados ou se dão bem. Pesquisas frequentemente alegam que ser homem é um fator de risco para desenvolver o uso problemático de jogos digitais, mas rastreamentos e tratamentos são sempre tratados sem considerar questões de gênero. Nunca vi ninguém pedir a profissionais de saúde, pesquisadores, ou políticos para considerar questões de gênero no que diz respeito a jogos.
O viés delta é quando celebramos um comportamento incomum para um dos sexos, mas o denegrimos quando é comum. Quando discutem os aspectos positivos de jogar, os pesquisadores enfatizam que mulheres jogam menos frequentemente e menos intensamente que homens, o que resulta em perda de benefícios. Para eles, encorajar as mulheres a jogarem jogos (digitais) com mais frequência é um dever moral para alcançar a equidade de gênero.
Muitos problemas surgem desse duplo padrão. Primeiramente, já é difícil encontrar estudos mostrando se jogos têm efeitos de longo prazo. Caso afirmativo, é possível obter benefícios similares de outra forma? Por exemplo, há quem repita o argumento de Lever de que jogos ensinam os meninos trabalho em equipe e como lidar com a competição, habilidades importantes para o mercado de trabalho. Então, as meninas conseguem aprender trabalho em equipe e como lidar com a competição só através dos jogos? Essa é uma suposição pesada, e fortemente indicativa de viés delta. Até onde sabemos, encorajar meninas a jogar jogos digitais com mais frequência pode aumentar o risco de desenvolverem hábitos de jogo problemático sem benefícios reais para compensar.
Segundo, faltam evidências de que o uso problemático de jogos digitais é um transtorno em vez de apenas um sintoma de outro problema. Não há motivo biológico para as pessoas se “viciarem” em jogos digitais e não em jogos analógicos. Causas hipotéticas de adicção também estão presentes em jogos de tabuleiro de corrida, figurinhas colecionáveis e filmes. Além disso, comportamentos problemáticos de jogo geralmente coexistem com outros transtornos mentais, como depressão maior. Os melhores preditores para o comportamento problemático de jogar parecem ser o contexto social e o escapismo, ou seja, usar jogos para evitar pensamentos negativos e fingir o que não se é. Como homens costumam jogar jogos para lidar com o estresse mais comumente que as mulheres, jogar problematicamente pode ser uma estratégia de autorregulação associada ao sexo e que deu errada.
Em terceiro lugar, jogos têm um papel importante na socialização masculina. Os jogos são temas comuns em conversas em meios masculinos, muito mais do que em meios femininos. Além disso, os homens não só jogam mais jogos e falam mais sobre jogos, mas também gastam mais tempo e dinheiro adquirindo conhecimentos relacionados a jogos e assistem outras pessoas (geralmente homens) jogarem. No Brasil, cerca de 73% dos meninos e 47% das meninas jogam jogos digitais, pelo menos, frequentemente. Essa “super representatividade” dos homens é vista mundialmente e em todos os gêneros de jogos (ou seja, esportes, jogos de tabuleiro, de cartas, de interpretação de papeis (ou RPGs), apostas em jogos de habilidades etc.), exceto jogos de azar puro e hobbies não jogos (ex.: quebra-cabeças). Os pesquisadores nunca mencionam se, ao avaliarem a gravidade e prevalência de comportamentos problemáticos de jogo, eles corrigem seus resultados para refletir estes fatos, mas tomo o silêncio deles como um “não”.
Além disso, jogos digitais multiplayer são o padrão atualmente. Mas pesquisadores sobre jogos digitais reconhecem que mesmo jogos single-player são sociais porque jogadores usam suas experiências como temas de conversa, material de desenho, concursos de conhecimento, indicadores de pertencimento de grupo etc. Ao jogar, os jogadores às vezes ajudam seus oponentes, o que raramente é visto em outros tipos de competição.
Isso me levou à minha pesquisa de doutorado: o engajamento mais intenso dos homens com os jogos pode não ser devido a normas patriarcais, como às vezes sugerido, mas sim a uma característica evoluída. A priori, é enigmático porque os homens tanto jogam quanto assistem outros jogando mais frequentemente que mulheres, e por que jogos são tão importantes para eles. Uma hipótese plausível vem de pesquisas evolucionistas sobre fãs de esportes: quase todo jogo simula habilidades usadas em guerras e caças, domínios tradicionalmente masculinos.
Mas vamos retornar à relação entre jogos e guerra/caça. No mundo real, guerras e caças têm um custo considerável; homens morrem e seus colegas entram em luto. É aí que entram os jogos. Os jogos, com suas regras e busca por justiça, são como experimentos científicos. Os jogadores podem testar estratégias e, se não funcionarem, sobrevivem para jogar de novo. Você aprende suas forças e fraquezas, bem como a dos outros. Você descobre com quem gosta de jogar. Você pode perder um jogo ou um jogador pode “morrer”, mas você aprende com a experiência e melhora sua performance e aprende como perder com espírito esportivo e camaradagem.
“Não esqueçamos que as pessoas jogam porque gostam deles e se importam com seus amigos. É perturbador ver como o interesse masculino em jogos é deturpado.”
Em vez de vermos o domínio masculino nos jogos como resultante de conspirações misóginas, ele é mais provavelmente um estilo evoluído tipicamente masculino para encontrar e manter amigos. Não estou dizendo que mulheres não devam jogar. Elas podem fazer qualquer coisa que apreciem se for respeitoso e seguro para elas mesmas e outras pessoas. Mas comportamentos relacionados ao gênero não são, inerentemente, ruins nem opressivos.
O viés gama em discussões sobre uso problemático de jogos também é preocupante, porque eles geralmente focam em restringir o acesso aos jogos digitais. Contudo, restringir o acesso aos meninos e homens aos jogos digitais podem restringir seus acessos a mecanismos de enfrentamento. Os pesquisadores precisam avaliar se os benefícios de tratamentos focados na restrição ao acesso e compará-los com os benefícios de tratamentos focados em ensinar estratégias de enfrentamento e ambos devem considerar diferenças sexuais nessas estratégias.
Não esqueçamos que pessoas jogam porque gostam deles e se importam com seus amigos. É perturbador ver como os interesses masculinos pelos jogos é deturpado. A aparente universalidade das diferenças sexuais nos jogos sugere que eles resultam de processos evolutivos. Ganhamos muito mais entendendo esses processos em vez de moralizando-os.
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